A colonização da América Latina, marcada pelo desrespeito aos costumes e saberes milenares dos povos originários — e, posteriormente, pela negação da herança, dos ritos e da espiritualidade dos povos escravizados — consolidou o cristianismo como religião oficial sob a égide do imperialismo colonizador ocidental. Nesse processo histórico, Estado e Igreja atuaram de forma integrada, difundindo crenças e práticas que se tornaram hegemônicas.
Diversas celebrações foram, então, incorporadas e difundidas, sobretudo por meio da Igreja Católica Apostólica Romana. A Europa consolidou-se como um celeiro cultural da cristandade, tendo Roma como centro irradiador do saber e articuladora das diretrizes oriundas das Sagradas Escrituras. Tomando Jesus Cristo como pilastra fundante — aquele que instituiu Pedro como chefe terreno de sua Igreja — firmou-se a máxima bíblica: “o que ligares na terra será ligado no Céu”. Assim, o mundo passou a orientar-se sob a histórica máxima atribuída a Santo Agostinho: “Roma locuta, causa finita est” — Roma falou, está decidido.
Nada disso causa estranhamento, quando se observa como uma celebração atravessa séculos carregada de sentidos para a humanidade. O Natal, antes de tudo, rememora a materialização da aliança de Deus com os homens: o Verbo anunciado pelos profetas e precursores, prometido como Redentor para resgatar a humanidade da condição do pecado original, faz-se carne e vem habitar entre nós. É essa encarnação que renova, ano após ano, um convite à reflexão.
“E o Verbo se fez homem e veio habitar entre nós”. Em sua vida pública, Jesus anunciou um Reino de igualdade, justiça e paz, no qual todos são chamados à fraternidade, reconhecendo em Deus um único Pai. Tudo em nome do amor — um sentimento infinito e misericordioso, desprendido da matéria, que concede ao ser humano o livre-arbítrio como caminho de humanização; uma lei sem os arroubos das paixões mundanas, capaz de conduzir cada ser à plenitude que lhe é destinada.
Entretanto, algo se perdeu pelo caminho. No cenário contemporâneo, observa-se uma confusão entre a vivência religiosa e a busca por projeção social, alimentada pelo consumismo e pela lógica do capital. Vive-se uma permanente tensão entre o ser e o ter, em meio a uma cultura natalina que foi, em parte, desviada de sua grandeza original — aquela marcada pela simplicidade, pela partilha e pelo despojamento material.
O Cristo celebrado no Natal é um Rei que nasce pequeno: menino, frágil e pobre, entre os humildes de coração. O Rei dos Reis, esperado pelos poderosos com pompa e esplendor, chega excluído, sem abrigo e sem teto, tendo seu corpo envolto em panos simples sobre as palhas de uma manjedoura. Ainda assim, o verdadeiro aniversariante é frequentemente esquecido. Perde-se o sentido e o dono da festa enquanto se cultua a aparência, os banquetes e os presentes caros — muitas vezes vazios de significado humano. A celebração reduz-se a gestos superficiais, orientados por uma lógica de consumo destinada a saciar uma gulodice social desenfreada.
Nesse contexto, esquece-se novamente o protagonista da data, enquanto tantos “Cristos” perambulam pelas ruas, sobrevivendo das migalhas das mesas fartas da noite natalina. São homens, mulheres, crianças e adolescentes abandonados, lembrados, em parte, por obras humanitárias de boa vontade e, na maioria das vezes, por ações vinculadas às políticas do “pão e do circo” — meras formalidades de uma desfaçatez que humilha os pedintes, mas melhora estatísticas e promove projeções pessoais, nas quais o Cristo não encontraria lugar.
Desejo, por fim, que o verdadeiro presente do Natal seja a comunhão espiritual e fraterna, e não o consumismo imposto pela lógica do capital. O Natal celebra o Deus que se fez menino, o Príncipe da Paz, que escolheu nascer entre os simples, longe dos palácios e das riquezas. “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados!” — ecoa o anúncio do anjo, que ainda reverbera e insiste em nos lembrar do essencial.
Não importa o credo, a origem ou o fenótipo; meu desejo é que o Natal seja universal, seja diário, um renascimento fraterno cuja medida seja farta de tolerância, respeito e escuta, em todos os povos, em todas as nações e religiões. Que o Natal seja luz e possa contagiar todas as consciências, inclusive as de dirigentes e líderes, especialmente os da chamada linha dura, pois não há Natal em meu solo pátrio quando se atenta contra a dignidade da pessoa humana, quando se impõe a força e se destrói no outro, aquilo que se almeja para si.
Diante de tais verdades, é oportuno indagar: hoje, em sua jornada, haveria espaço para que a família de Nazaré adentrasse o seu lar? Haveria vagas na hospedaria do seu coração? O Verbo de Deus encontraria espaço para multiplicar ensinamentos fraternos em sua existência, na vida daqueles que lhe são próximos e no meio em que você circula, em especial junto aos invisíveis que você insiste em não ver, por acreditar que não é problema seu?
Independentemente das respostas, meu desejo é que você perceba que o modismo social evolui sempre, mas o Cristo continua o mesmo: nenhum jota, nenhum só til foi retirado ou alterado da Lei, sem que tudo se cumpra. Desejo, por fim, que o Natal aconteça primeiro dentro de você. Que o Cristo encontre morada em seu coração e suscite esperança, amor e cuidado com o próximo. Que a imagem e semelhança de Deus se revelem em gestos concretos, permitindo-nos trocar o Natal do “ter” pelo Natal do “ser” — para viver e desejar, verdadeiramente, um Feliz Natal.
Antônio Martins de Almeida Filho, Cadeira 28 da AQL